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AMA DE LEITE

Posted in Literatura, Uncategorized by leonardomeimes on 08/07/2010
Mulher nua

Mulher nua

Um garoto fuçava o lixo, farejando qualquer resto que lhe pudesse forrar o bucho, ainda não colhera nada desde que se levantou o sol, o único a lhe esquentar o estômago e as enxaquecas até aquele momento. Se lhe faltava o sol a situação agravava, sentia calafrios em pensar nas noites chuvosas da capital dos pinheirais, roupas grudentas umedecidas, a geada que enevava a grama. Tossia. Não havia cura para o mal que lhe espreitava, para a morte esgueira, para o sofrimento desumanizador e inevitável. Destino que lhe perturbava. Tão grande era seu medo do frio! Porém, maior o da morte…

Caminhava sonâmbulo sem atinar para o destino, sabia do inevitável, cuidava de alimentar a fome para não morrer de angústia, sofria o que tinha de sofrer para não se lembrar da sorte. As pernas arrastavam-se sem fôlego, queriam logo ficar estáticas, mudas, e trançavam-se num movimento epiléptico quando as cãibras o lembravam de que ainda vivia. O garoto se refrescava a sombra das árvores, nos toldos das lojas e à noite para dormir se escondia em baixo das estátuas. Os olhos exalavam o frio; frio que denunciava a alma; sabia que de alma o corpo havia se despido há muito tempo, afinal sem nome, sem família e prostituído à vida, sobrava o quê? Havia resistente a tosse…

Homem nu

Homem nu

Isso, dele já era certo, adiaria o quanto pudesse. Corria mais uma vez os olhos pelas sacolas de uma lanchonete, competindo com pombos; sorvia água da poça, da fonte em que cavalos gorfavam e se limpava mergulhando no chafariz da Santos Andrade. Espalhava-se sobre a cidade como um espectador coadjuvante, não se dirigia a ninguém e os outros fingiam que ele não vivia. Uma não-convivência pacífica. Apesar disso, tinha bisbilhotice pelas pessoas, e que forma mais fácil de conhecer alguém do que chafurdando seu lixo! Guardava uma infinidade de objetos: pentes, muitos laços, flores de plástico, mimos, um colar com pérolas de plástico! Acreditava presentear uma futura companheira com a joia. Ao sair desse mundo, caía em meio à geleiras humanas, à uma tosse magra, a um fado triste. Tinha horror a guardas, viviam lhe cutucando enquanto dormia, caçavam-lhe após os banhos de chafariz e o olhavam sempre com desdém.

Homem nu

Homem nu

Naquele dia o rapaz tinha intento, tinha um anseio, um destino… Queria longe dele a dama gótica que lhe caçoava a cada tropeço. Ao anoitecer juntou tudo que tinha, o nada que os outros haviam consumido, e correu para sua campa. Como o dia findara não havia alma humana para lhe advertir, o frio já começava a ouriçar seus pelos, suas mãos mal conseguiam se manter de tão roxas. Pôde começar seu rito. Na praça, começou pedindo bênção ao pai, homem nu, gigante, importante, olhando sempre para o horizonte, sem saber o que lhe vinha no encalço e sem nunca olhar para trás. Sem saber como, o menino sabia que os olhos desse homem não eram como os dos outros que têm medo do inerente, não tinha o calor da alma mundana relegada ao inferno. Agradeceu a bênção do pai e foi ter com a mãe. Contemplou-a de longe por um segundo, sentiu o anseio candente que lhe comia por dentro. Ao passar ao lado de um canteiro de flores, sentiu pena por elas terem que aguentar caladas aquele mundo etéreo, colheu um punhado de beijinhos e finalmente usou-os para agradar mamãe. Um beijinho a enfeitar os ombros, um beijinho a enfeitar os pés rechonchos, outro para seu colo tornar-se mais que um jazigo. Por fim, pôs o colar no pescoço e os laços nos dedos da mulher.

Agachou-se para pedir a bênção e ao terminar a frase os pingos de chuva começaram a cair, a chuva que sempre lhe castigara o corpo não deixava de trazer alguma magia ao momento. Ouviu murmúrios de Moiras conspirantes prontas para dar fim ao tricô. A tosse afligia e a chuva provavelmente o daria por vencido. Apressado, deitou-se no colo da mulher, segurou a flor que sobrara com a boca, escondeu suas mãos entre as pernas e fechou os olhos para dormir. No ombro da estátua, uma pomba pousou tentando se esconder da chuva, sem êxito, desceu ao colo do garoto pegou a pequena flor com seu bico e voou dali para algum lugar da noite. A mãe, então, abraçou seu filho para que ambos se esquecessem da eternidade que ali passariam juntos. O suspiro de alívio veio com a notícia do destino imortal.

No outro dia, a surpresa era incomum, ninguém se recordava que o homem e a mulher nus tinham um filho.

Leonardo Meimes

5 Respostas

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  1. tartaruguinha said, on 08/07/2010 at 16:28

    Muito bonito Léozinho. 🙂
    Vc sabe escrever, não se subestime!

    Bjim

    • leonardomeimes said, on 08/07/2010 at 16:55

      Vc que encorajou a continuar =-)

      • tartaruguinha said, on 08/07/2010 at 16:58

        Eu? Mas vc já tinha escrito esse conto muito antes de eu dizer qualquer coisa!!! Vc tem que saber o que vc gosta e correr atrás 🙂

        • leonardomeimes said, on 08/07/2010 at 17:03

          mas eu nao gostava dele tanto, dai resolvi mudar ele um pouco e gostei, mas ainda acho que não sirvo pra isso. BJO

          • tartaruguinha said, on 08/07/2010 at 18:36

            Ah, para com isso! 😉
            Bjo


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